Os cicloviajantes que fazem a travessia do Turcomenistão, em 99% das vezes o realizam com um visto de trânsito, que permite no máximo 5 dias de estadia no país, com pontos de entrada e saída pré-especificados e que devem ser respeitados.
Percorrer cerca de 500 km em 5 dias de bicicleta, com um clima que pode ser extremo não é muito agradável. É sentar na bicicleta bem cedo pela manhã e pedalar o dia todo, parando apenas para repor água, comer e fugir um pouco do calor, com poucas chances de contato com a cultura e pessoas locais. As paisagens são um pouco monótonas, porém nas cidades há algumas coisas interessantes, ou pelo menos exóticas, para conhecer, assim como alguns sítios arqueológicos, mas com o tempo escasso para turismo, é muito difícil fazer outras coisas além de dormir, pedalar, come, beber água e repetir isso pelos próximos dias no país.
Devido a total falta de informação sobre este país, decidimos pesquisar um pouco sobre ele antes de entrarmos lá. Alguns pontos eram “voz comum” em todas as fontes, incluindo outros cicloviajantes que passaram por lá: O país vive uma ditadura desde a saída da ex-união soviética, com líderes egocêntricos com idéias estranhas; O contato com os locais é difícil devido a esta tentativa de controle total do estado, mas alguns viajantes tiveram experiências boas com locais; As paisagens são na maioria das vezes monótonas e desérticas; Há policiais por todos os lados vigiando tudo e todos.
Para ter uma ideia melhor das peculiaridades, há alguns documentários feitos ha alguns anos atrás, que mostram um pouco das bizarrices por la:
Entramos no país vindos do Irã pela fronteira de Sarakhs. Do lado iraniano tive o azar de ser escolhido para um interrogatório, mas o oficial estava sempre tranquilo e educado. Além de várias perguntas sobre onde estivemos e quem conhecemos no Irã, ainda tivemos que fornecer nossos telefones celulares para uma checagem de fotos e agenda em busca de contatos no Irã, tudo muito estranho, mas até aí, nestes lados do mundo muitas coisas eram estranhas e não faziam sentido para nós, o famoso “choque cultural”. O segredo foi relaxar e ter paciência, mas infelizmente esta enrolação do lado Iraniano estava comendo um tempo precioso que precisaríamos no Turcomenistão.
Depois das perguntas e checagem das bagagens no Raio-X, tivemos nossa saída carimbada e finalmente, quase 11 horas da manhã entramos no Turcomenistão. A fronteira em Serakhs estava muito tranquila e quieta, tivemos que mostrar nossos passaportes dezenas de vezes para vários militares de serviço por lá e depois de pagarmos uma “taxa misteriosa” de 14 USD por pessoa, recebemos nosso “Welcome to Turkmenistan” e entramos no país.
Era quase meio dia, o calor estava bombando, já estávamos com fome e ainda teríamos mais de 100 km para pedalar pela frente. A rota que escolhemos foi o caminho mais curto entre Serakhs e a fronteira com o Uzbequistão, com aproximadamente 450 km de distância. Logo após a fronteira trocamos dinheiro informalmente com alguns homens que faziam câmbio por alí.
O dinheiro no Turcomenistão é o Manat e o governo tenta sem sucesso mascarar seu real valor. O Câmbio oficial é de cerca de 1 dolar americano para 3.5 Manats , mas no câmbio negro trocamos 1 USD por 18 manats.
Em Serahs paramos cerca de 1 hora para almoçarmos antes de começarmos a corrida maluca pelo país. Neste tempo por lá um policial a paisana se aproximou para saber se iríamos ficar muito tempo por ali e perguntar se sabíamos o roteiro e tudo mais, o “big brother” Turcomenistão estava somente começando.
As estradas no país não são boas e o trecho entre Serahs e Hauz Han é cortado por uma estrada interiorana toda detonada, um “atalho” para os ciclistas. Mas um atalho nada fácil. As temperaturas chegaram a 40C e era raridade uma sombra, fora o vento contra, ou melhor “bafo quente contra” o tempo todo. Após 115 km de sofrência e dor na bunda chegamos finalmente, as 10 da noite, em uma pequena cidade, Hauz Haz, onde dormimos em um hotel.
Dia 2 de Turcomenistão, mais 115km (Calor, estradas melhores e começamos a perceber que estamos sempre sendo seguidos). Antes de entrarmos no país decidimos assistir alguns documentários (os mesmos postados anteriormente) e ler um pouco sobre como funciona o país e seu governo. Não sei se foi muito bom isso pois conseguimos perceber melhor alguns detalhes que se não soubéssemos de antemão talvez não fossemos reparar.
O dia começou bem quente, mas as estradas deram uma melhorada. As 9 da manhã já havíamos pedalado cerca de 20 km e avistamos uma vendinha ao lado da pista. Chegando lá só havíamos nós de cliente e decidi perguntar ao dono, que era bem hospitaleiro: “O sr troca dolares?” Trocar dinheiro com pessoas no país é ilegal e pode dar até prisão. Ele respondeu que sim discretamente e fez a cotação de 18 Manats para 1 dolar. Rapidamente trocamos 20 dolares e fomos para fora conversar. Em menos de 5 minutos encostou um carro e desceu um oficial do exercito e sua esposa. Com gestos eles foram bem claros dizendo que estavam de olho em nós. Sim, o Turcomenistão é o verdadeiro “Big Brother” e o “Grande irmão” (governo) controla tudo e todos. Por sorte eles não perceberam que trocamos dinheiro no cambio negro com o outro turcomêno. Desta hora em diante começamos a reparar nos carros e nas pessoas e perceber que estavamos sempre sendo seguidos e observados. No horário do almoço paramos cerca de 3 horas para escapar do sol e vez ou outra parava o mesmo carro próximo e ficava nos observando. No final da tarde atravessamos a cidade histórica de Mary, mas não tiramos foto de nada por medo e chegamos a Bayramaly, seguidos até a entrada do hotel por um carro branco. Tudo muito estranho neste país controlado de maneira paranoica pelo governo e policia.
Paramos na cidade de Bayramali no final do nosso segundo dia de Turcomenistão, cansados depois de 115km e um calor danado. Entramos na cidade e fomos procurar alguma pensão com preço mais barato, detalhe, sempre seguidos por um carro branco. Chegamos então a uma pensão, paramos a bicicleta, o carro branco parou logo atrás. A Flavinha ficou esperando com a bike do lado de fora e eu entrei para conversar. A dona era uma simpática senhora russa que falava inglês muito bem. O preço estava tabelado na parede e o quarto ficou em 80 Manats (cerca de 5 dólares pela cotação não oficial). Ótimo, deixei meu passaporte e sai para pegar as coisas na bicicleta, nesta hora o homem que dirigia o carro saiu e entrou no hotel. Quando voltei com as malas na recepção para pagar, o homem conversava em russo com a dona. Ela então pediu desculpas e disse que o preço seria diferente, além dos 80 Manats deveríamos pagar mais 3 dólares cada um como “taxa de turismo”. O homem falou em russo novamente com ela e ela respondeu : “Brazilia” (Brasil em russo) e depois ele perguntou algo mais e ela falou o numero do nosso quarto em russo e me perguntou em inglês que horas iríamos sair no outro dia. Neste momento já respondi diretamente ao homem, em turco, que sairíamos as 6 da manhã devido ao sol, nesta hora ele finalmente me olhou nos olhos e sorriu. Bom, no final das contas pagamos os 6 dólares e ela entregou o dinheiro diretamente para ele, tudo muito estranho.
A “caixinha” dele? Não temos certeza, mas desconfiamos, afinal de contas a polícia é sabidamente corrupta por lá.
O homem foi embora e nós fomos para nosso quarto, desconfiados. Não sentimos perigo ou ameaça alguma, mas estava sendo desconfortável esse monitoramente constante. A partir deste dia eles perceberam que sabíamos que estavamos sendo seguidos e nem disfarçavam mais.
No outro dia nos despedimos da simpática senhora e quando demos a primeira pedalada escutamos um carro ligar o motor e nos seguir o tempo todo até sairmos da cidade. Como vamos devagar, em um momento o carro ficou do nosso lado e eu comprimentei os dois policiais fardados que estavam dentro, eles fizeram positivo com as mãos.
Cruzar o Turcomenistão fazendo pelo menos 100 km todos os dias, sendo monitorados o tempo todo, com vento contra, calor de 40C e sem interação com a cultura e população local não estava sendo agradável pra nós. No terceiro dia saímos cedo de Bayramali e a ideia era pedalar entre 120 e 140km e acampar em algum lugar no deserto. Depois de 70 km pedalados, sob um sol forte e pedalando devagar em uma subida, um caminhão passou por nós e parou. O motorista fez um gesto que levaria a gente. Nesta hora não pensamos duas vezes e aceitamos a carona, não fazia sentido algum pedalar aquele trecho. Estava sendo duro, calor, sem fonte de água, com dor na bunda depois de tantos kms pedalados em menos de 3 dias, sem nada interessante para ver e o pior, sendo seguidos o tempo todo e sem a chance de interagir com as pessoas locais.
O “Zé” era um rapaz super animado, para não dizer “bem doido”, hehehehe. Dar carona para turistas é proibido no país, por isso além de não citar o nome, cobrimos o rosto dele com essa imagem de “anjinho”, afinal, neste dia ele nos salvou. Não passava ninguém na estrada na hora que pegamos carona, então ninguém viu e fomos levados tranquilamente por ele até a cidade de Turkmenabat, nossa última parada antes de deixarmos o país. Chegando em Turkmenabat montamos a bike rapidamente e seguimos direto para o hotel, desta vez fomos mais rápidos, entrei, fiz check-in e paguei. Voltei para pegar as malas e a bike e quando entramos na recepção lá estava um polícia a paisana sentado, mas foi tarde demais, este não conseguiu “morder” uns dólares, hehehe. Não foi cobrada “taxa turística” nenhuma.
Nossa experiência: Esperávamos uma vivência diferente neste país, mas infelizmente para nós duas coisas nos deixaram desanimados em pedalar por lá: o extensivo monitoramento por parte da polícia e do governo e a dificuldade em fazer contatos humanos.
O Turcomenistão vive uma ditadura ferrenha, que eles apelidam de “presidencialismo”. O país é hoje considerado um dos regimes mais opressivos e fechados do mundo. O presidente tem controle total da vida pública, da midia, internet e lidera um regime que não tolera expressões políticas ou religiosas alternativas. Não precisamos citar que Direito Humanos também não fazem parte da agenda do governo.
As grandes cidades são limpas, bonitas, cheias de luxos, mas a maioria da população vive fora das áreas bonitas.
Outra coisa bizarra é um culto a personalidade do presidente, feito pelo estado. Há estatuas de ouro nas cidades e fotos dele por todos os lados.
Dá para entender porque dois viajantes percorrendo o mundo de maneira livre sob sua bicicleta não são muito interessantes por lá, para o governo. O visto de trânsito não nos obrigava a termos um guia.
Queríamos muito fazer contato com as pessoas, mas sentíamos o medo delas em se aproximar de nós turistas, além disso também queríamos fazer mais fotos e vídeos, mas ficamos inseguros sobre o que poderíamos ou não fazer, afinal, o “Big Brother” estava de olho…
Conversando com outros viajantes ouvimos histórias parecidas com a nossa e também bem diferentes, onde as pessoas não se sentiram observadas ou seguidas e inclusive fizeram até mais contatos com a população. Talvez não tivemos muita sorte, mas independente disso tudo, nos sentimos aliviados em deixar este país e entrar no Uzbequistão, um vizinho bem mais tranquilo de pedalar, do qual falaremos em outro Post.