O “Mantra do Pedal”. Por que mudamos nossos planos após a Ásia Central?

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Quando viajamos de bicicleta, em muitos dias passamos várias horas sentados e diferentemente do que pode parecer a maioria dos dias são muito comuns e alguns monótonos. Momentos de surpresa e paisagens surpreendentes acontecem, mas não é a maioria do tempo que passamos pedalando. Logo, na maioria do tempo os estímulos externos não nos distraem e acabamos fazendo uma viagem paralela muito interessante, uma viagem para dentro de nós mesmos e estes momentos são muito especiais para nós. Nestas viagens interiores pensamos sobre nossa vida, sobre situações que passamos, coisas que vimos, sentimos e podemos filosofar silenciosamente sobre diversos assuntos e “digerir” mentalmente muitas coisas.

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Parece que viajando de bicicleta isso acontece com maior facilidade e chamamos isso de “O mantra do pedal”. A palavra Mantra vem do sânscrito Manmente e Tra, controle ou proteção, significando “instrumento para conduzir a mente” e é uma sílaba ou poema, normalmente em sânscrito. Os mantras se originaram do hinduísmo, porém são utilizados também no budismo e jainismo, bem como notoriamente por práticas espirituais que não têm vínculo com religiões estabelecidas. O mantra é uma fórmula mística e ritual recitada ou cantada repetidamente pelos fiéis de certas correntes budistas e hinduístas. O termo é uma palavra em sânscrito que significa ‘controle da mente’. O mantra é repetido de forma a auxiliar a concentração durante a meditação. O pedalar é algo repetitivo e cadenciado e o barulhinho da bicicleta também, o que ajuda nestes momentos de meditação que temos sobre duas rodas.

Vários outros cicloviajantes relatam os mesmos momentos de meditação e viagem interna quando conversamos sobre este assunto. Mais um ponto especial em ciclo-viajar.

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“O Mantra do Pedal” tem influencia direta sobre o andamento do nosso roteiro e tomadas de decisões. Nosso plano antes de chegarmos ao Irã era obter o visto para China na capital Tehran, sabendo que depois ficaria quase impossível na Ásia Central devido a burocracias e restrições consulares. Nesta época já estávamos viajando ha quase 2 anos e sabíamos muito bem o que gostávamos mais na nossa viagem e os problemas e perrengues que não queríamos passar novamente. Conversando com outros ciclo-viajantes e lendo Blogs daqueles que passaram pela província de Xinjiang, que seria nossa porta de entrada no país, percebemos que desde o início de 2019, devido a problemas políticos naquela região, os cicloviajantes estavam sendo parados em vários check-points, tendo seus celulares e câmeras revistados inclusive com a instalação de programas do governo chinês nos celulares, sendo proibidos de pedalar em diversos trechos, incluindo proibição para acampar, sendo escoltados ou levados pela polícia em suas pick-ups até hoteis em cidades e alguns deles recebendo visitas inesperadas de policiais em seus quartos de hotel a noite.

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Durante vários dias de pedal pelo Irã pensamos bastante sobre nossa passagem pela China, além disso haveria também a burocracia e gastos com o visto. O “Mantra do Pedal” nos mostrou que talvez a viagem não fosse tão proveitosa no país e que poderíamos seguir viagem sem passar lá, que as vezes é melhor não “forçar a barra” apenas para manter um roteiro pré-programado. Isto não fazia sentido, um roteiro engessado não cabia no espírito de liberdade da nossa viagem. Aceitamos então que neste momento seria melhor não visitar a China, que permeou nossos sonhos durante o caminho até ali e que agora deixaríamos passar. Já estávamos tão perto dela… Mas nem sempre se pode ter tudo não é mesmo?

Bom, retirando a China do roteiro pensamos como faríamos para chegar no Sudeste Asiático vindos da Ásia Central. Paquistão e Kashmira estavam fora dos nossos planos mais ou menos pelos mesmos motivos que descartamos a China. A saída que encontramos foi voar da capital do Quirguistão, Bishkek, para o Nepal, mais especificamente a cidade de Kathmandu e de lá seguiríamos pela Índia, Myanmar e passaríamos pelos outros países até a Malasia. Planos refeitos, deixamos para comprar a passagem quando chegássemos ao Uzbequistão.

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A viagem seguiu, do Irã entramos no bizarro e duro Turcomenistão, que não foi fácil cruzar com um visto de trânsito de 5 dias ( Post aqui ), depois veio o saboroso Uzbequistão ( Post aqui ) e em seguida a aventuresca Pamir Highway, passando pelo Tajiquistão ( 3 posts ) e Quirguistão ( Post aqui ).

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A Pamir Highway, assim como a Patagônia Argentina, foi um dos trechos da viagem que nos levou a mais momentos de reflexão durante o “Mantra do Pedal”. Muitas vezes estávamos sozinhos em meio a uma imensidão paisagística, silenciosa ou com um barulho de vento constante, que nos levava a várias viagens interiores. A dureza do caminho nos fazia sentir falta do conforto e muitos pensamentos se passaram por nossas cabeças. Quando estávamos em nossa barraca escondidos do frio dentro dos nossos sacos de dormir, conversávamos sobre nossos pensamentos do dia e novamente parecia que havia chegado outro momento de remodelação de nosso roteiro.

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Desde que iniciamos a viagem acampamos muito ou ficamos nas casas de muitas pessoas, foram momentos adoráveis e de muito aprendizado, mas acreditem, tudo cansa e é bom oscilar. Desde o Irã recebemos muita hospitalidade das pessoas pelos caminhos e foi assim até o final da Pamir, mas ao mesmo tempo os momentos de privacidade diminuíram, afinal de contas dois turistas viajando em uma bicicleta tandem por estas partes do mundo ainda atraem muitos curiosos e muitos olhares, e novamente acreditem… cansa também.

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Desde a Turquia até a Armênia, durante cerca de 5 meses pedalamos com um clima frio, nevascas e madrugadas congelantes, no começo era folclórico e divertido, mas com o tempo o frio e os dias curtos cansam físico e psicologicamente. Na Pamir o frio voltou para nos trazer a certeza de que não queríamos mais aquilo, precisávamos de mais tropicalidade em nossas vidas. Como dois brasileiros, estávamos com abstinência de climas mais amenos e quentes.

Novamente pesquisamos bastante sobre os países que percorreríamos em seguida e depois da “digestão mental” de todos os nossos sentimentos, conversas com amigos e revisão de nossa rota, o “Mantra do Pedal” nos levou a alterar os planos.

A Índia é sabidamente um país muito intenso em todos os sentidos, bons e ruins e o problema naquele momento para nós seria a pouca privacidade e alta possibilidade de problemas diarréicos ( tivemos muitos na Ásia Central ). Myanmar é lindo mas chegaríamos bem na época das chuvas por lá (Monsões) o que deixaria tudo muito difícil e queríamos um período de calmaria e tranquilida após a Pamir Highway. Ir a Índia e Myanmar neste momento de nossa viagem não seria a melhor opção. Não gostaríamos de experimentar estes países e sair com gosto amargo deles.

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Como falei, já sabemos os perrengues e problemas que não gostamos, fazem parte da viagem, mas quando possível por que não evitá-los ? Alguns poucos meses depois de inciarmos nossa volta ao mundo deixamos de romantizar o sofrimento. Queremos aproveitar a viagem e flexibilizar o roteiro, levando tudo da maneira mais leve o possível (menos em relação a bicicleta e bagagens, já tentamos, mas continuamos carregando um “peso pesado”, hehehe).

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A somatória de todos estes fatores gerou um turbilhão em nossa mente, que foi digerido pelo “Mantra do Pedal” durante nosso período de quase 40 dias percorrendo a Pamir Highway, na Ásia Central. Sentamos ao lado da barraca em um final de tarde e decidimos: “Novamente não vale a pena forçar a barra! O que queremos e precisamos é um período de tranquilidade e tropicalismo! Então, vamos pular direto para o Sudeste Asiático que será melhor”.

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Foi uma sábia decisão, pois neste momento que escrevo este post estamos sentados em frente a uma bela e tranquila praia tailandesa, com uma temperatura ideal para roupas de verão e uma lua cheia linda no céu. Sem tristeza por termos pulado a província de Xinjiang na China, a Índia e o Myanmar. Talvez pelo Nepal apenas, ficamos lamentosos por não termos visitado.

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Após a Pamir Highway, cancelamos nossa passagem para Kathmandu e com o voucher conseguímos outra passagem, desta vez para Hanoi, no Vietnam e foi perfeito. Chegamos no Sudeste Asiático e encontramos tudo o que estávamos precisando naquele momento, uma mudança completa. Uma tropicalidade que mudou nosso humor, uma culinária rica, praias por todos os lados, muito verde, pessoas mais acostumadas com turistas e possibilidades de acomodação com baixo custo, ahhh muitas noites em uma cama confortável após um banho de chuveiro… como precisávamos disto.

Nossa programação pelo Sudeste Asiático ainda levará 1 mês e meio mais ou menos. Aquela saudades dos acampamentos selvagens esta voltando e com ela sabemos que a vontade de mais mudanças virá.

As viagens de bicicleta trazem muitas coisas nas horas certas, o segredo é seguir “O Mantra do Pedal”, hehehehe… um sábio Guru.

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